sexta-feira, 30 de outubro de 2009

1906. VIDAS ESQUECIDAS

Custódio Gonçalves Figueiredo tinha 52 anos. Quis a banalidade fria e cortante dos baptismos que nem nos nomes Custódio Gonçalves Figueiredo, se distinguisse dos nomes portugues que há espalhados por essas ruas, largos, praças dessas terras portuguesas que polvilham os territórios. Vi-o uma vez na vida, num destes últimos pacatos domingos, onde fui almoçar ao seu "O Kamanga", por onde já tinha passado vezes sem conta, mas nunca tinha entrado, sei lá porquê. Ao domingo os restaurantes fecham quase todos em Tomar, sei lá porquê e os sobrantes transbordam de comensais preguiçosos. O Custódio era o dono do restaurante. A sua figura, mesmo para quem o via pela primeira vez, tornava-se, desde então, inesquecível, sei lá porquê. A fala arrastada, desinteressada do que o rodeava, um mecanicismo suspeito na dança dos talheres e das travessas, que muitas vezes trocava e que aparentava um quase desinteresse pela sorte da conta final a pagar pelo cliente. Parecia que receber era até um contratempo. E se calhar era mesmo. Um tanto faz, como fez, ou antes pelo contrário.

O dono do restaurante “O Kamanga” matou-se, deixemo-nos de merdas de palavras, na tarde desta quarta-feira. Foi encontrado sem vida na sua casa na rua de S. João, em Tomar. “O Kamanga”, fica ali situado na esquina da R. de S. João com a R. dos Moinhos, onde seres humanos são obrigados há meses a engolir, em sentido literal, a comer o pó da estrada, devido à incompetencia da Camara Municipal, entretanto reeleita, na mais sinistra ofensa à memória daquele sofrido Custódio, que no mínimo mereceria um reles asfalto para evitar buracos nas solas e joanetes nos pés, para ao menos andar normalmente de acordo com as regras do homo erectus.

Foi à tarde, numa quarta-feira, o estranho e indefinido dia do meio da semana, pelo método de enforcamento. Segundo um vizinho, “ele andava um bocado em baixo”. Isto, hoje, não quer dizer absolutamente coisa alguma, ou seja, nada. Andamos todos em baixo e daí? Mas ele, não. Tinha razões especiais, para lá das razões especiais dos outros para andar em baixo e que são sempre diferentes umas das outras, sei lá porquê. Soube hoje, como sempre tarde demais para exercícios de salvamento, de algumas delas. E o que interessava, se acaso eu as tivesse sabido antes? Nada. Nada mesmo. Não teria feito nada. Cruamente nada. É isto a desumanização. E há muito tempo que nunca me tivesse talvez sabido tão bem escrever um texto tão verdadeiro, sem final . Feliz ou infeliz. Apenas sem final, como julgo que a vida é. Sem final.

2 comentários:

Anónimo disse...

Brutal!
Normalmente leio-o com atenção o que escreve e, dezenas de vezes, discordo. Mas desta vez... está "brutal"! Sabe-se lá porquê?!

Uma seguidora

Anónimo disse...

Mas não é o turismo que vai salvar Tomar?
Ninguém morre sózinho.
Toda a comunidade tomarense se está suicidar há muitos anos.