Podia ter sido n' A Brasileira ou, mais abaixo, no café Chiado, mas a proximidade da Escola António Arroio, onde estudavam, foi decisiva: acabaram por "adoptar" o Café Herminius para as suas tertúlias de convívio e "descobertas". A descoberta do Surrealismo, por exemplo. Estava-se nos primeiros anos da década de 40 e era de jovens - poetas e pintores ainda "em formação", ainda em busca de caminho - o grupo que se sentava à mesa do Herminius. Entre outros, Mário Cesariny, Fernando José Francisco, Vespeira, Cruzeiro Seixas. "Não nos fixávamos num café - conta à Lusa Cruzeiro Seixas - Andava-se quilómetros a pé por Lisboa, ia-se da Baixa à Almirante Reis, ao Largo do Chile, com toda a facilidade a pé. Conversávamos, trocávamos as nossas descobertas, sensacionais sempre, e sempre sensíveis". Oitenta e nove anos, único sobrevivente do grupo, o pintor e poeta recorda um texto de Cesariny em que este, "em frases poéticas, lindíssimas, como fotografias poéticas de uma época", descreve cenas e figuras daquele café. "Era um teatro, um teatro amargo, aquilo era de loucura". Desfilavam "a velha dos ursinhos", caçadores "com os cães todos", enquanto, lá fora, caras achatadas contra o vidro, crianças esfomeadas olhavam para o café que os do grupo tomavam, para o bolo que comiam...Um quadro com toque neo-realista.
O Surrealismo estava a chegar. Pelo final dos anos 30, começara a falar-se dele em Portugal. O poeta, pintor e homem de teatro António Pedro é talvez o primeiro a dar-lhe voz. Mas a ideia era francesa, com paternidade - de André Breton - atestada num primeiro Manifesto em 1924. Um segundo manifesto, cinco anos depois, consagra e desenvolve as teses expostas no primeiro. Aí se lerá que o Surrealismo é "automatismo psíquico puro, por meio do qual se trata de expressar verbalmente, por escrito ou por qualquer outra forma, o funcionamento real do pensamento, com ausência de controlo da razão, e de toda a preocupção estética ou moral". Vai ser preciso esperar mais 11 anos para que uma primeira tentativa de dar expressão portuguesa às directivas do Manifesto ocorra: uma inconsequente exposição nos Salões Repe, em Lisboa. Dois anos depois, novo passo para o historial do movimento, António Pedro publica "Apenas uma narrativa", que os compêndios referenciam como a primeira colectânea de textos surrealistas-automáticos publicada em Portugal. Mas, se uma data é possível avançar como a da implantação do Surrealismo, como movimento, em Portugal, ela é 1947, 23 anos depois do primeiro Manifesto bretoniano.
"Uma coisa que é completamente injusta - pondera Cruzeiro Seixas - é dizer-se que, em Portugal, o Surrealismo começou atrasado. Muitos anos depois começaram a surgir grupos surrealistas em todo o mundo, inclusive um dos grupos mais importantes hoje, que é o de Chicago. Não chegámos atrasados de maneira nenhuma. Chegámos na altura em que a nossa idade o permitia, em que o permitia o governo fascista". Dados lançados, os jovens do grupo do Herminius juntam-se a outros, de outros cafés, de outras experiências, e articulam ideias, vão fixando objectivos, dando forma a projectos. Por essa altura, Cruzeiro Seixas faz uma incursão, breve, pelo neo-realismo. Não renega a experiência. "Quase todos nós - lembra - passámos por lá. Mas não ficámos presos. Ninguém ficou preso". Junta-se aos Surrealistas um ano depois de estes se terem apresentado como Voz a ser tida em conta na Praça cultural portuguesa. Além dele, fazem parte do grupo, entre outros, José Augusto França, Cesariny, Alexandre O'Neill, António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira, Carlos Eurico da Costa, Pedro Oom, Carlos Calvet. Não é fácil, o caminho, e as divergências, os choques de personalidade, as pressões externas acabam por determinar a ruptura. Ficam, de um lado, os fiéis à linha bretoniana, e, do outro, os que defendiam uma mais activa intervenção social, uma presença política mais empenhada, na linha de Aragon e Eluard.
Recorda Cruzeiro Seixas: "A nossa tese era mais próxima de Breton. O Breton foi procurado pelo António Pedro, procurado pelo Cesariny, procurado pelo Risques Pereira. Quase todos pediram uma entrevista, quase todos foram recebidos. Acho que devem ter dito qualquer coisa que não agradou nada ao Breton. Não achou graça nenhuma ao Grupo Surrealista de Lisboa, ao Surrealismo português". Separados daquele Grupo, Cesariny, Seixas, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Henrique Risques Pereira, Mário Henrique Leiria, Carlos Eurico da Costa, Fernando Alves dos Santos, António Paulo Tomás, Carlos Calvet, Fernando José Francisco e João Artur da Silva reúnem-se num "anti-grupo surrealista". Ficarão para a história do movimento com este nome: Os Surrealistas. 1949, o ano seguinte ao da cisão, virá a ser determinante na história do Movimento: a par de proclamações, textos publicados e conferências em defesa das razões que os movem, os dois «antagonistas» querem mostrar obra feita. Para tanto, organizam, cada um por seu lado, exposições. A primeira, logo em Janeiro, é a do Grupo Surrealista de Lisboa. A outra, a de Os Surrealistas, acontece cinco meses mais tarde, entre 18 de Junho e 2 de Julho.
O testemunho de Cruzeiro Seixas sobre a exposição é concludente:" Para nós,era quase como dizer que representava a própria vida. Era uma questão quase de vida e de morte, de morte interior e de vida interior, também". "Era - desenvolve - uma opção quase heróica fazer qualquer coisa. Era tão heróico fazer qualquer coisa que resolvemos, de certa maneira para fugir às responsabilidades desse heroísmo, acabar com a palavra 'grupo' e pôr 'Os Surrealistas'. Isso era importantíssimo como definição. Quem passar por cima disso está a ter uma má visão das coisas".
O testemunho de Cruzeiro Seixas sobre a exposição é concludente:" Para nós,era quase como dizer que representava a própria vida. Era uma questão quase de vida e de morte, de morte interior e de vida interior, também". "Era - desenvolve - uma opção quase heróica fazer qualquer coisa. Era tão heróico fazer qualquer coisa que resolvemos, de certa maneira para fugir às responsabilidades desse heroísmo, acabar com a palavra 'grupo' e pôr 'Os Surrealistas'. Isso era importantíssimo como definição. Quem passar por cima disso está a ter uma má visão das coisas".
A exposição realizou-se na sala de projecções da Pathé-Baby, à Rua Augusto Rosa, "entre a Sé e o Aljube", como Cruzeiro Seixas gosta de anotar. Sessenta anos volvidos, a Perve Galeria recorda o momento organizando um Ciclo de Celebração que decorrerá em vários espaços expositivos e que, na sala onde a exposição aconteceu, dará a ver documentos e obras dos surrealistas «dissidentes» dos anos 40. Como está hoje o Surrealismo? Cruzeiro Seixas não tem dúvidas: "Está vivo". E ainda: "Um dos grandes surrealistas teve esta frase, que eu acho lindíssima, e estou absolutamente de acordo com ela: 'o Surrealismo é eterno'. É uma ideia que não morre, que vai ficar a gerar dentro dos homens e que vai, naturalmente, evoluir. Mas é eterna, como naturalmente o neo-realismo também. Tudo isto são fases. Um braço é surrealista, outro braço é neo-realista. Nós somos feitos desses pedaços todos de Cultura". Onde antes funcionava o Café Herminius, esse que terá sido um dos primeiros berços do Surrealismo em Portugal (o Café Gelo entra depois na História do Movimento), há hoje uma agência funerária. Simbolismo nenhum. Cruzeiro Seixas e outros o disseram: o Surrealismo é eterno, é uma ideia que não morre.
Fonte: Lusa.
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